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Foto do escritorAna Miguel

MEU PRIMEIRO LUTO...SILENCIADO E NÃO VIVIDO!

Te carreguei no ventre, nos meus sonhos e esperanças. Hoje te carrego no coração, nas lembranças e na saudade.”

Desconhecida


Sou menina do interior, criada para ser uma boa esposa, uma ótima mãe, excelente profissional e principalmente uma beleza de dona de casa. Minha mãe dava cursos de etiqueta para debutantes e eu sempre estava junto ajudando nas aulas então acabei aprendendo de tudo um pouco, por exemplo a como receber bem, arrumar uma mesa, me portar com elegância, enfim aprendi coisas que durante muito tempo entendi como baboseiras sem fim para nossos tempos. Mal sabia eu que essas aulas me salvariam em encontros de trabalho que envolviam almoços, jantares e cafés, ao conhecer pessoas, visitar casas novas de amigos, ao visitar bebês recém-nascidos e muitas outras situações de vida.


E eu sempre sonhei em formar a minha família. Conheci meu marido aos 24 anos e desde lá eu tinha muita vontade de ser mãe, eu queria demais me casar e logo engravidar, mas para meu marido filho era uma tabela de Excel como eu costumo dizer. Por isso, o sonho foi sendo adiado.


Casamos aos trinta anos e a discussão seguia. Eu queria ser mãe. Como sempre tive pressão arterial alta, eu tinha receio de engravidar muito mais velha e ter problemas por isso. Aos trinta já se corre um pouco mais de riscos do que aos 24, mas continuamos adiando. Foi então que aos 31 decidimos que eu tiraria o DIU, que usei desde os 27 anos em função da pressão alta, e começaríamos “os trabalhos” para tentar engravidar. Eu já tomava o ácido fólico bem antes de tirar o DIU, ou seja, estávamos chegando no momento e eu estava cada dia mais feliz por isso.


Foi tudo tão perfeito que 45 dias depois de retirar o DIU eu engravidei. Não tenho nem como explicar minha felicidade e do Cris com a notícia, apesar de ter sido um susto termos conseguido tão rápido.

Por eu ser uma pessoa extrovertida, festeira, não ter problemas em compartilhar alegrias e tristezas e por eu querer tanto tanto esse filho, não esperamos o fim do primeiro trimestre para contar aos amigos e familiares. Há 17 anos atrás, não existia Instagram nem Facebook e o Orkut nós não usávamos muito, fui ligando para amigos e familiares para anunciar a boa nova.


Os dias foram passando e eu sentindo cada vez mais a presença do meu bebê em sua nova casa que era o meu ventre. Meus seios estavam fartos e muito doloridos, mas isso não era nada para mim, pois eu estava tão feliz que qualquer desconforto era visto como uma vitória, pois levava ali o serzinho que eu mais sonhei em ter na vida.


Eu já acariciava minha barriga e conversava com meu bebê. Como eu era mais magrinha nessa época senti com muita rapidez minha barriga endurecer e tomar uma forma mais arredondada que eu estava achando linda. Colocava roupas mais justas para ver se alguém “notava” minha gravidez, mas é claro que não, mesmo assim eu tentava.


Os presentes chegavam aos montes, nunca vou esquecer de uma cesta enorme que ganhamos da minha cunhada (irmã do meu marido) e meu cunhado, que iam ser Dindos; nela tinham ursinhos, roupinhas em tons de verde água, fraldinhas, lencinhos, tudo muito lindo e fofo. Estávamos amando esse momento e curtindo cada minuto da “nossa” gravidez.


Dia após dia eu senti meu corpo se modificar. Lá pela oitava semana pedimos então para meu cunhado que é Médico Ginecologista e Obstetra e tinha naquela época uma clínica de ecografia, que fizesse minha primeira ecografia. Participamos os 4 daquele momento emocionante, meu marido Cris, minha cunhada Gabi e meu cunhado Felipe. Lembro de todos os momentos daquele dia.


A princípio estava tudo bem, não ouvimos o coraçãozinho o que era normal naquela etapa, mas meu cunhado identificou um coágulo ao lado da “vesícula vitelínica” que era a casinha do nosso bebê. Ele disse que a tendência do corpo era de expelir o coágulo, no entanto às vezes poderia expulsar junto o saquinho que abrigava nosso bebê, então ele sugeriu que eu fizesse repouso e dali a uns 10 dias faríamos nova eco. Fiz repouso e cuidei absurdamente para não termos nenhuma intercorrência.


Passado o tempo sugerido voltamos para novo exame. De novo nós 4, juntos. O rosto do meu cunhado ficou muito sério e ele teve de nos dar a notícia de que nosso “embrião” não tinha evoluído, o que significava que nosso bebê não resistiu...com 10 semanas, ele se foi. Fiz tudo que estava ao meu alcance para que isso não ocorresse, mas eu sabia que não era uma escolha minha, no entanto eu queria que tivesse sido.


Já o amávamos incondicionalmente, perder o nosso bebê era algo inconcebível para mim, de forma consciente. Ele já estava ali, já tinha espaço no meu corpo e em nosso coração, já fazia parte da nossa vida, do nosso dia a dia. Não se pensa nesse fim! Assim, a morte, chamada nesse momento de “não evoluiu”, se apresentou para nós.


Tudo havia terminado tão rápido como começou...menos a nossa dor. Voltamos para casa, meu marido e eu, no carro em total silêncio. Eu não sabia se chorava ou só ficava em silêncio, afinal “estava SÓ com 10 semanas”, imagina se tivesse nascido, se fosse com 5 ou 6 meses, daí sim seria pior...era o que eu ouvia. E por vergonha de sofrer e ser recriminada eu silenciei. Silenciei o pranto, mas o coração não acalmou. No carro, a caminho de casa, meu marido segurou minha mão, sorriu levemente e balançou a cabeça como se me dissesse: eu te amo e estou aqui contigo...eu não sinto o que tu sentes, mas minha mão é teu apoio. E assim voltamos para casa, em silêncio.


Lembro de olhar pela janela do carro, não chorei, mas só conseguia pensar: “Por quê? Eu queria tanto, por que Deus tirou isso de mim? Eu fiz algo errado? Talvez tenha sido naquele dia em que me levantei, arrumei a cama, lavei louça e coloquei a roupa na máquina, eu sabia que deveria ter ficado de molho na cama.”


Então, infelizmente começava aí um calvário pelo qual eu não gostaria de ter passado. Calvário não somente no sentido físico, mas principalmente no emocional. A primeira frase que ouvi foi a já tradicional: “tu és nova, logo logo vais engravidar de novo” ou a outra: “Deus sabe o que faz, foi melhor assim né? São coisas que acontecem”, perder um filho é só “algo que acontece?”. Cada vez que eu ouvia algo assim parecia que estavam fincando uma faca no meu peito e, perder um filho, seja no tempo que for dói e muito, mas ao mesmo tempo eu procurava me conformar, pois eu sempre fui uma pessoa resiliente e naquele momento eu também deveria, afinal estava no início né? Parece que esta afirmação faz com que a gente congele ali naquele momento e deixe de sentir. Havia em mim um forte sentimento de inadequação perante aquela dor imensa.


Fui a consulta com a minha obstetra e ela sugeriu que o melhor seria eu esperar o corpo expelir o embrião de forma natural, no entanto, isso poderia demorar uns 30 dias. Eu tentei aguardar, mas infelizmente minha cabeça não ajudou muito, minha barriga não desinchava e nada de descer. Na primeira semana eu não aguentei, pensava a cada minuto que meu embrião, meu bebê (eu já não sabia como chamá-lo) estava ali, aconchegado no meu ventre, mas sem vida...eu não queria pensar isso por 30 dias e então pedi para a médica para fazermos a curetagem. Ela marcou o hospital e me deu 2 ou 3 comprimidos para tomar na noite anterior à curetagem.


Tomei os comprimidos e fui dormir. Na madrugada comecei a ter dores muito muito fortes que me fizeram passar a noite indo e voltando ao banheiro...eu não tinha nem ideia de que aquilo eram contrações para expelir meu filho sem vida. Às 6h da manhã o sangue desceu e não parou mais. Assim eu fui para o hospital, com muitas dores e sangrando. Nada na vida nos prepara para isso. Entrar num hospital com muito sangramento carregando nosso filho morto na barriga.


Ao chegar no hospital fiquei sabendo que a curetagem seria feita no centro obstétrico o que me deixou apavorada e até um pouco revoltada (mas eu estava tão frágil emocionalmente que não me sentia capaz de questionar o que quer que fosse naquele dia). A enfermeira que me atendeu foi muito carinhosa, então eu me sentei naquela sala de espera com gestantes que estavam ali para ganhar seus bebês e eu estava ali para tirar o meu. Nesse momento os sentimentos de desamparo, tristeza, insegurança, solidão nos abatem de tal forma que a sensação que eu tinha era de não ouvir nada nem ninguém, eu simplesmente abstraí.


Procedimento feito, fui para a sala de recuperação do centro obstétrico onde as mãezinhas felizes recebiam seus filhos nos braços. Eu acordei e a enfermeira veio me ver. Não segurei e uma lágrima rolou na minha face. Ela me pediu desculpas por eu ter de ficar naquele lugar e fechou as cortinas da minha baia para que ficasse mais à vontade, afinal eu sangrava muito e não precisava ver aquelas cenas que naquele momento me enchiam de tristeza. Parece um pouco egoísta, mas infelizmente era só o que eu conseguia sentir naquele momento.


Saímos dali e fomos direto para a praia, passar o final de semana na casa dos meus pais para eu me recuperar do procedimento. Foi uma viagem de 1h30min bem silenciosa, quase não falamos, só ouvimos música e eu olhava para o nada. De novo, meu marido que não sabe muito o que dizer nessas horas (será que alguém saberia? Nem eu sabia!) segurou a minha mão e sorriu como quem diz: eu estou aqui e tu podes contar comigo! Te amo!


Não chorei! Afinal, chorar por um “embrião de 10 semanas”? Só pode chorar a perda de um filho quem vê um corpinho sem vida...era o que eu ouvia. Eu não tinha o direito de chorar, então, eu não chorei. E a dor viveu em mim por 15 anos, sem poder ser chorada.

Eu sangrei durante 50 dias ininterruptamente. Tive de tomar medicação para parar de sangrar e todo dia aquele sangue me lembrava do que eu havia perdido. Depois de 90 dias estava liberada para tentar de novo se eu quisesse. Mas é claro que queríamos.


Todos os meses, quando a menstruação descia eu chorava. Ao ver filmes e documentários sobre bebês, gravidez, morte eu chorava muito e só o meu marido sabia, ninguém conheceu ou ficou sabendo da minha dor...afinal eram “só 10 semanas né?” e cada vez que uma frase como essa era dita, mais eu escondia minha dor. Foi um esforço tão grande em escondê-la que em pouco tempo ela ficou numa caixinha, bem lá no fundo, fechada e escondida.


Esse é um luto solitário, um luto que não nos dão o direito de viver, afinal eram só 10 semanas...um luto que eu levei 15 anos para viver. Um luto vivido no isolamento, na solidão dos nossos pensamentos, sem a vivência da nossa dor.


Oito meses depois da perda, engravidei do meu bebê arco-íris. Nasceu saudável e lindo o nosso pequeno grande Arthur que hoje está com 16 anos. Ele também me ensinou o que é o amor incondicional, me ensinou a ser mais contemplativa para as coisas da vida, mas com a chegada dele, meu luto ali se interrompeu e assim ficou até que o próprio Arthur me fez uma pergunta quando tinha 14 anos: “Mãe, por que eu não tive irmão?”


Engoli em seco e respondi que como eu tenho problemas de pressão alta optamos por não ter outra gravidez e arriscar a minha vida e do bebê, então eu comentei que eu já havia engravidado antes dele, mas que a gravidez não foi até o fim, perdemos nosso bebê com 10 semanas de gestação. Eis que ele me retruca: “Mas então eu tive sim um irmão ou uma irmã mais velha, só que não nasceu!”


Foi como receber um tapa na cara, no bom sentido! Ali eu percebi a dor que aquela perda me causava porque fortes emoções retornaram. Comecei a ler sobre o assunto e entendi que sim, ele, nosso bebê existiu, fez parte da nossa vida por um período curto, mas não era só um embrião, era o nosso bebê, que teve sua casinha no meu ventre durante 10 semanas.


Dentre as minhas leituras, um livro me fez ter essa visão ainda mais clara que é o “Maternidade Interrompida. O drama da perda gestacional” de Maria Manuela Pontes (org.). São relatos de mães interrompidas, que tiveram suas perdas até as 20 semanas de gestação e que demonstram o quanto a dor é imensa com 9, 12, 15 ou 20 semanas. A nossa cultura faz com que não se tenha a consciência de como é frágil a maternidade. Como diz a organizadora “são testemunhos reais de uma dura realidade, que, silenciosa, clama por ser ouvida”.


É uma dor normalmente não vivida, um luto abafado pelo sentimento de “vergonha” de sofrer por um bebê que não nasceu, não existe um corpo, existe o sangue, mas existe sim a dor imensa de quem o carregou por semanas sentindo as mudanças no corpo e já amando incondicionalmente.

Ainda sinto o preconceito com relação a minha dor principalmente das pessoas mais próximas, mas agora tenho mais coragem e mais entendimento sobre o que passei e as consequências da não vivência do meu luto, pois lido com elas diariamente.


“Luto não é algo que precisa ser superado como se fosse um obstáculo. Luto é um processo que precisa ser vivenciado e integrado a realidade cotidiana. Como todo processo terá um início, no ato da perda, um meio e o seu fim se dará quando a dor da perda se tornar memória e saudade.”

Nazaré Jacobucci


Hoje eu me sinto impelida a ajudar quem passou e passa pelo mesmo que eu. Ainda sinto dor, ainda me emociono quando falo sobre nosso “bebê anjo”, mas agora eu falo sobre ele, não nego sua curta existência e aceito que ele tinha que viver aquelas 10 semanas em mim.


Aos poucos, quanto mais eu falo ou escrevo, mais paz sinto no coração! E tudo vai ficando bem!



Fiquem bem!

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2 commentaires


luciacapaverde
04 déc. 2021

Te entendo muito Mana, senti igual, passei por tudo isso, mas sozinha, achando que era legal uma produção independente, hoje vejo a loucura e dor que encarei sozinha, mas fui a fundo nesse luto!!!

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Ana Miguel
Ana Miguel
04 déc. 2021
En réponse à

Que Bom Que conseguiste ir a fundo!! Eu hoje sofro as consequências de não ter ido!!! Mas tudo passa né??? ❤️😍

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Olá, que bom ver você por aqui!

Espero que você curta comigo essa travessia! Vamos juntos ajustar nossas velas e curtir.

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